Jaimlet

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Das coisas que a gente assiste e lava todo o nosso cansaço e faz a alma aparecer de novo. E dá uma lustrada nela. E abraça ela. E se abraça através dela.

Um dos espetáculos mais arrebatadores que já vi. E faz realmente chacoalhar os conceitos e ampliar as camadas não do ofício teatral apenas, mas do ofício de viver.

 

Estou falando do espetáculo peruano “Hamlet” que se apresentou no Mirada. A peça se inspira no texto de Hamlet e conta com um elenco de cinco atores e três atrizes com síndrome de down. E o “ser ou não ser” de Hamlet, é friccionado nos embates das vidas pessoais destes atores. Mais que “ser ou não ser?”, talvez o embate seja “como ser?”. É possível “ser” numa sociedade que não leva em conta sua existência? Com uma irreverência invejável o espetáculo nos apresenta a questão da diversidade cognitiva.

E esta minha última frase tem um ar afetado e excessivamente intelectual que nem de longe esbarra na montagem política, crítica, leve, divertida, satírica, simples, amorosa e inteligente que mobilizou os espíritos adormecidos da plateia ontem. 

 

Logo de cara já nos deixam avisados sobre o que pode acontecer. E esse aviso não é uma autodefesa e sim um recado amoroso que diz nas entrelinhas: “nós sabemos o que vocês estão pensando neste exato momento”. Nos primeiros minutos eles já descascam todas as camadas de conceitos equivocados que trazemos à seu respeito.

E então, com maestria, eles nos conduzem pela narrativa tirando uma onda federal da nossa ignorância a respeito das capacidades deles.

Um tapa na nossa ignorância, mas um tapa amoroso.

E um tapa com amor, faz toda a diferença

E então temos uma obra política e crítica que funciona. Que nos abraça. Que caçoa de nós e a gente reconhece o quanto temos merecido essa caçoada porque temos sido ridículos. Ridículos enquanto sociedade ao desenhar um padrão cognitivo “normal” simplesmente porque a maioria corresponde a esse padrão e nomear “síndromes” todas as outras chaves de expressão cognitiva que fogem a esse padrão.

E temos um riso constrangido.

E falamos com eles como se fossem crianças.

E achamos mesmo que eles não entendem as coisas.

E essa nossa incapacidade em perceber a capacidade do outro, nos faz ridículos. 

E eles sabem da nossa ignorância e da nossa limitada capacidade em percebê-los. E nos mostram isso de uma forma doce e ao mesmo tempo ácida. Pura e ao mesmo tempo maliciosa. 

Uma coisa é certa: nada ali é fingido.

Poucas vezes vi a verdade em cima de um palco porque a verdade é algo muito simples. E no palco queremos engrandecer as coisas. Deixá-las maiores, bem coreografadas, bem projetadas, bem ditas. No palco, geralmente, queremos ser notados colocando camadas de verniz em cima do que somos. Porque não confiamos na nossa fragilidade. 

Eles sabem disso. E, com todo cuidado, nos despiram deixando a nossa fragilidade à mostra. Porque sabem que apenas a fragilidade pode enxergar a fragilidade. E quando a fragilidade é compartilhada, temos aquilo que chamamos “força”. 

 

A propósito: Jaimlet é a junção de Jaime (um dos atores) com Hamlet, como ele mesmo se apresenta.

 

PS – No final, fui dar um abraço na diretora Chela De Ferrari. E ela responde com um sorriso singelo e um humilde “Gracias”.  Sem o pedantismo de quem está pondo no mundo uma pauta política importante. Embora esteja. Pra caralho.

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