Pai,
21 anos sem você, hoje.
Acho que hoje atingi a maioridade no luto.
Quando vc foi eu tinha 21 anos e sabia muito pouco da vida.
Muito pouco comparando com o que é ter 21 anos hoje.
Vc fez muita falta.
O contorno que vc sabia dar às coisas nos fez muita falta
Os limites
A disciplina
O humor
A força de vontade
As broncas
Tudo aquilo pelo qual brigávamos tanto
Hoje me faz tanto sentido
Tudo aquilo que mais desafiei em você
Hoje quero me tornar
Tudo aquilo que mais admirava em você,
Percebo que metade sou e a metade que não soube ser me faz muita falta
21 anos
Era a idade que eu tinha quando você foi
Não sabia ser filha
Não sabia ser amiga
Não sabia ser, talvez, aquilo que você mais precisasse
Não sabia nada
Mas sabia me deixar levar pela sua magia
Hoje, vivo desta magia
Hoje – pasme, pai – criei uma personagem para simbolizar sua magia
Você sempre produziu pequenos mundos mágicos dentro de um mundo metódico
E isso fez toda a diferença
Pra nós e pra você
Te fez aguentar a realidade
Me fez aguentar a realidade
Hoje a Produtora de Mundos encarna um luto não apenas da lacuna da sua pessoa, mas da sua poesia
Por isso ela é pura poesia
Um misto de adulta criança brincando de levar a vida muito a sério
Pois a vida é também muito séria
Ao passo que pode virar uma grande piada em questão de segundos
Se você mudar a ótica
Mudar o recorte da janela
Usar um óculos para sonhar
Como esse que você comprou pra usar todas as noite
Pra você, era uma disciplina se manter atento a sonhar
Sonhar era um compromisso muito sério ao que vi você se dedicar com afinco
Você sempre se manteve no limiar entre o mundo real e o mundo imaginário e isso me encanta.
Fico com vontade de te contar como está o mundo hoje
Lembro de você fascinado com a JVC
Com o Windows
Você não sabe, mas hoje os computadores cabem no nosso bolso, pai. São telinhas pequenas e podemos falar com quem quiser e achar pessoas que não vemos há muito tempo.
Você ficaria louco num Polishop.
Ficaria louco com a tecnologia do multiverso.
Você teria perfil no insta?
Estaria com cabelos brancos ou preferiria tingir?
Quais as músicas que você ouviria hoje?
O que você acharia de tudo isso que está acontecendo em nosso país?
De que lado você estaria nisso tudo?
Continuaria usando bigode?
Conseguiria trabalhar menos?
Estaria mais silencioso ou mais falante?
Teria votado em quem?
Teríamos um grupo no WhatsApp eu, você e minha mãe?
Que tipo de assunto alimentaria esse grupo?
Como seria você aqui hoje? Fico imaginando você enlouquecido com o mundo virtual, cinema 3D, 4D.
Você teria publicado seu livro da combinoteca?
O que teria achado de Luís Antônio Gabriela?
Como teria vivenciado a pandemia?
Como seria você hoje, pai?
Sua voz?
Suas roupas?
Manteria os mesmos hábitos?
Teria dificuldade em envelhecer?
Ia querer muito um neto?
A saudade vem de um você que conheci há muito tempo.
Eu tento encaixar o você de 21 anos atrás nos dias de hoje mas fica um grande espaço em branco. Um hiato de muitos “e se…”.
Nesse hiato eu idealizo muitas versões de você hoje. Gosto de brincar disso.
Gosto de pensar que estou te contando como foi viver nesses últimos 21 anos e quantas mudanças ocorreram.
Passamos por uma pandemia e você não chegou nem a presenciar o 11 de setembro.
Foram muitos acontecimentos, pai.
O mundo mudou demais.
Mas parece que tudo continua igual. Talvez uma ruga ou outra.
A sensação de eternidade prevalece. Com você longe parece que a roda das coisas do mundo passa rápido demais. E num piscar tudo é eterno. Num piscar esse mundo é só esse mundo e você me parece mais real. Por estar fora desta roda.
Sei que você lê isso à sua maneira.
Quem sabe em algumas décadas não podemos falar por esse multiverso?
Numa espécie de zoom entre diferentes estados de existência?
Os daqui com os daí?
Já pensou?
Um beijo
Te amo.
(02/04/2022)