Ao Vento
Ao meu pai
À mim
Meu coração acorda agora pra essa falta. Eu fiquei toda desenhada por linhas que não eram o que eu vivi.
Quem botou em mim esse sorriso quando o que eu mais precisava era chorar?
Quem encheu minha casa pra eu não sentir a falta que ficou?
Vento: você não leva ninguém embora. A sua traição é habitar um corpo que me acostuma e, na sequência, desabitá-lo. Assim, sem mais.
Quem me ensinou a aceitar, a resignar, a confiar? A ter essa certeza tão intrínseca e inata que desacomoda todos à minha volta?
Você, Vento, ao desabitar meu pai, entrou em mim e me deixou vazia.
Doze anos de uma vida estupidamente feliz que não se apercebe de seus arredores.
O Vento não tem peso para imprimir sua marca. Ele atraiçoa nos sulcos que ele não deixa.
Quando você saiu de dentro daquele corpo – e eu me lembro exatamente o que é um corpo sem vento – tudo avermelhou.
A primeira cor da morte é amarela. A segunda é vermelha para o roxo. A terceira eu não sei, eu não vi. O sorriso branco (como disseram) no caixão, eu não vi.
Era pra ser uma cor serena, Vento?
Era pra ser tão sereno quanto a logística de dar essa notícia pras pessoas?
Onde foi que eu não vi você morrer?
Onde foi que eu não senti você faltar?
O que eu não deixei entrar ou sair de mim desde esse dia?
Até hoje sonho que você foi embora com um celular que nunca atende. Às vezes você aparece e é um evento te receber. Tão estranho você ter ido – nos meus sonhos – não sei pra onde e nunca dar notícias.
Eu preciso sentar com coragem e descrever com minúcia o dia 2 de abril. Apenas uma segunda-feira 2 de abril.
Deixei pedaços desse dia em tudo o que vivi, sem saber que eram restos de uma vida que não voltou.
Por que essa segunda-feira não bateu com força?
Por que não bateu nem de raspão?
Passou ao largo do meu tão asséptico e bem informado espírito. Que tudo sabia da outra vida e não se permitiu chorar por conta disso. Em vez disso, eu li. Li como nunca. Devorei toda a geografia do plano espiritual para saber o que se comia, se vestia, como se locomovia. Para estar mais próxima desta matéria da qual você é feito agora.
Eu fui junto pra me informar e voltei como se nada. Como se fossem seis meses na Irlanda.
Alguém pode me contar que meu pai morreu?
Acho que perdi algo no caminho.
Nasci em tantas coisas nas quais você não estava.
Não me lembro dos nossos lugares comuns.
Preciso ver nossos vídeos para lembrar o que era essa marca em minha vida.
(A vida são dias balançados, jogados de um lado pro outro por um vento que ilude uma sequência, mas que só quer mesmo é ventar. Movimentar. Quando os dias caem, a gente os monta e lhes dá lógica. Besteira. Daqui a pouco venta e tudo se bagunça e se desacomoda e a gente não vê.)
E não houve uma noite de lua cheia onde você não estivesse presente, olhando daí, como sempre dizia. Esse era o lugar mais indolor que meu corpo aguentou lembrar em segurança.
Lembrar na praia embaixo da lua é melhor que lembrar em casa, na semana seguinte, com um prato a menos na mesa.
Meu corpo simplesmente escolheu lugares pra te lembrar sem que doesse.
Eu hoje estou te contando: seu pai morreu.
E não venha me dizer que essas coisas acontecem com todo mundo, que dos males o menor, que ele estava em casa nos braços de sua mãe. Que teve uma boa vida e que você sabe que foi amparado no plano espiritual. Não venha com essa salada do bem que te cobre pra não te tocar. E mesmo que ela exista, ela soterra destroços para onde você deve olhar.
Acho que descobri o segredo: (essa parte , Vento, não leia em voz alta, por favor.)
Quando você foi eu olhei pra cima, não pra baixo. Por isso eu não vi você morrer.
Vi você subir, não vi seu corpo descer.
Eu não vi o seu corpo descer.
Preciso rapidamente aproveitar os momentos que te aceito longe, pai, para registrá-los porque são raros.
Depois emendo-os numa colcha de te faço um relicário. Um relicário de um luto nunca vivido em 12 anos.
Eu não vivi você ir.
Eu nunca vivi você ir.
Nos olhos de minha mãe um brilho se apagou e se plantou uma lacuna que eu nunca entendi.
Por que ela chora se ninguém “morreu”? Se as pessoas só mudam de lugar temporariamente? Daqui a pouco a gente se encontra e os caminhos recomeçam nessa grande espiral que é brincar de existir em várias formas.
Tão simples.
É um até-logo de formas.
Vivi como um até-logo de formas até hoje e não consigo realizar isso de forma diferente. Não sei viver luto porque não sei não ir junto.
Luto é pra quem fica com a falta de vento.
Eu fui junto nesse vento torto que borra as formas todas e nos faz ter que decifrar onde elas estão.
Luto é pra quem fica.
Eu, eu fui junto.
(2013)