Sempre tive receio de parecer ser algo que eu não era.
Colocada num pedestal e e carimbada com uma única qualidade, uma única característica, um único posicionamento. Não apenas pelos equívocos que isso podia gerar, mas principalmente pelo fato de eu não poder me mexer muito pra caber dentro da idealização de alguém.
E, por consequência, sempre levei isso pro meu trabalho.
Especialmente dentro da Cia. Mungunzá de Teatro, da qual faço parte. Uma Cia. possivelmente muito idealizada na cabeça de muitas pessoas. (Como eu, lá atrás, no alto dos meus 20 anos, também idealizava companhias como o Galpão do Folias, Os Parlapatões, O Grupo Galpão).
E para não correr o mínimo risco de ser idealizada, eu sempre expus o lado de B de tudo. Não como o lado ruim, mas como o lado real. O lado onde a gente chora e tem medo também. Onde a gente se envergonha.
Onde a gente é porão.
Eu sempre quis expor os meus porões e conhecer os porões dos outros, pra ter certeza que, se ficarmos confortáveis no porão de alguém, podemos dizer que temos um encontro real na vida.
E que todos temos varandas e porões.
E que todos somos ÚNICOS.
Mas também, IGUAIS.
Tudo isso pra dizer que esses dias, depois de dar uma oficina com a Cia. Mungunzá, ouvi de um menino que saiu muito feliz dizendo que tinha visto todas as nossas peças e nunca tinha tido coragem de vir dar um abraço. Como se nós estivéssemos a quilômetros de distância dele, mesmo há poucos metros. E que, depois daquela oficina, ele viu que a gente (a Mungunzá) era “gente” também.
Isso me pegou.
Então sei lá. Acho que escrevo esse texto pra dizer que somos gente. Angelina Jolie é gente. Xuxa é gente. Lula é gente.
E que nós, que trabalhamos com nossa imagem, acabamos compondo a idealização de algo bem distinto de nós na cabeça de pessoas que não conhecemos.
E o quanto isso nos distancia do outro. E de nós mesmos, se acabarmos por acreditar na versão de nós que mora nesse outro.
E que, quando compomos um quadro na cabeça de alguém (que muitas vezes pode se sentir representado por nós de alguma forma) acabamos adquirindo uma responsabilidade que, em grande parte, ignoramos.
E que, para além disso, sempre alguém vai querer que a gente tenha o discurso x, o posicionamento y. E que nunca esteja de mau humor. Nem cansada. Nem de tpm. Nem precisando ficar quieta. Nem questionando e nem se questionando.
E hoje, com a cultura do cancelamento, estamos cada vez mais modelando uma sociedade “acrílica”.
Uma vírgula trocada e você é “cancelado”.
Um momento específico em que você expressa um sentimento que tem um embasamento mais subjetivo e você não é levado em conta como uma pessoa. Mas sim como um estandarte de algo.
UM ESTANDARTE DE ALGO.
Talvez por isso as pessoas tenham ficado tão mexidas na oficina. Porque criamos uma egrégora de confiança para oferecer o mínimo: um lugar de presença de corpos e pessoas únicas, mas também iguais.
E o mínimo comove.
E acreditem, num espaço onde o outro é livre para expressar-se com confiança, dificilmente sairá uma ofensa, um julgamento. Porque todo mundo em espaço de confiança e de generosidade é convidado a expressar seus porões como forma de saber-se gente.
É possível derreter na frente do outro e como é libertador poder derreter na frente do outro.
Numa sociedade onde pessoas são currículos e uma porção de seguidores, poder ser porão e derreter na frente do outro, é um luxo.
Eu tinha um amigo que me dizia que ele precisava sempre me “botar pra cima” porque eu sempre me “botava pra baixo”. E hoje vejo que, eu era tão segura de mim, que o que ele considerava “botar pra baixo” era minha tentativa desesperada de encontrar porões. De encontrar pessoas pra derreter junto.
Eu queria expressar minha carne e meu osso pra que, quem me visse, não se enganasse pela minha pele.
E percebo que quanto mais me preocupo com meu verniz e em mostrar apenas o meu melhor, é quando menos estou segura e amando de fato quem sou.
Eu e todos nós.
Porque somos únicos e iguais.