A menina se pegava nas ideias.
Como se ideias dessem banho , fizessem comida, passassem um pano no chão.
Ela sabia que habitava as coisas entre os vãos.
Por isso batia tanto a canela na quina das coisas.
Era um aviso amoroso da casa que a fazia lembrar que ela tinha corpo.
Um leite esquecido no fogo, uma torneira esquecida aberta, uma luz esquecida acesa, eram formas da menina precisar voltar à matéria.
Ela nasceu “entre”. E quem nasce “”entre se bifurca pra sempre em dois caminhos e nunca habita um corpo por inteiro.
Então, por sobrevivência, ela aprendeu a habitar a aura das coisas. Por isso ela pedia socorro ao seu corpo quando escrevia: era uma forma de encarnar seus metabolismos.
Daí vinha sua ansiedade: por nunca habitar nada direito precisava desesperadamente dar forma às coisas.
E parir era dar forma às coisas.
Palavras. Gestos. Sentidos.
Parir era uma segunda chance de nascer sem ser pelo vão.
Nascer direito, reta, entregue pra vida. Encarnada. Parir era poder reencarnar na mesma vida muitas vezes e ir dando acabamento à essa alma larga que se esparramava por tudo.
Parir era passar nanquim da borda das coisas. Com nanquim nas bordas o mundo podia ser visto e tocado. Com nanquim nas bordas ela podia finalmente caber dentro.
Quando pariu , passou as mãos delicadamente nesse nanquim fluido que saía de si e pôs-se a rabiscar o mundo.
Desenhou seus lábios, pernas, seios e sorriso. Órgãos, tecidos, ossos, sinapses.
E , assim, contornada de nanquim, ela paria a si mesma e ela sabia quem era e qual espaço lhe pertencia. Ela sabia o espaço que seu corpo ocupava e nunca mais bateu a canela na quina.
Ela, agora, morava em si.
(2020)