Serei irresponsavelmente literária.
Eu não quero mais ser espinho.
Eu quero entender, não quero brigar.
Eu quero entender pra não me indignar tanto.
E, me indignando, não me afastar mais e mais e mais do OUTRO.
Quero entender tantas coisas. Das mais idiotas às mais complexas.
A filha do meu primo tem 6 anos, mora num condomínio de casas pequenas com uma área comum. Ela tem amizade com todas as crianças vizinhas. Meu primo é operário de uma indústria alimentícia e não pôde parar de trabalhar. Desde então as outras crianças do condomínio esperam ela sair da área comum para saírem pra brincar. Ela fica na janela fazendo tchau. As crianças – constrangidas por algo que lhes foi imposto- não respondem. Queria poder dizer ao pais dessas crianças: “A garota que acena pros seus filhos da janela do outro lado da rua talvez só queira um aceno de volta. Um sorriso. A garota sozinha na janela, quando sair na rua, não vai encurtar a distância dos dois metros exigidos. Ela sabe. Ela foi instruída. A garota na janela é filha do operário que está correndo risco de morte fazendo as balas que seus filhos estão comendo aí do outro lado da rua. Ele corre esse risco por vocês. E esse risco que ele corre macula a menina e te faz afastar seus filhos dela. Sem explicação. Sem um sorriso distante do outro lado da janela. Sem nada”.
Mas eu quero entender.
Entendo seu medo e o medo por seus filhos.
Mas não entendo a falta de tato.
Mas eu quero entender.
E também, de volta, quero que me entendam.
Eu quero entender por que alguém votou no Bolsonaro e, da mesma forma, quero que também entendam por que não votei nele.
Eu quero entender o pai da menina que teme pela sua saúde e quero que entendam o pai da menina que continua produzindo balas, correndo risco e ficando estigmatizado na vizinhança.
Entender sem que se desprezem os motivos. E, se não for possível não desprezar os motivos, que não se desprezem as pessoas por detrás dos motivos.
Que não se desprezem as pessoas por detrás dos motivos.
Eu quero entender não com a cabeça mas com minhas vísceras. Quero abrigar aquilo que não compreendo no meu útero e parir o desacordo. E ninar essa incompreensão como um bebê. Amamentar e cuidar até caber em mim. E então fazer a síntese.
Quem sabe assim, de parto em parto, a humanidade possa parir pequenos consensos.
Sem ser simbiótica apenas com seus pares.
Não quero não posso não consigo mais ser espinho, ser casaco do avesso. Não quero – como ser humano – botar fogo nos fascistas, metralhar comunistas, desprezar classe alta, chamar artista de vagabundo e pobre de acomodado.
Não quero – como ser humano – ser espinho PRO OUTRO.
Nem ser vírus nem nada que me impeça de tocar o outro, não com as mãos, mas com os órgãos. Quero um encontro de subjetividades.
Me cansei da militância cega e me cansei da apatia política. E como os dois são parecidos meu Deus. Como os dois são parecidos assim pelo espelho que mostra tudo com as esquerdas e as direitas trocadas. As esquerdas as direitas os partidos as ideologias trocadas.
Me cansei – enquanto ser humano – de confundir direito com privilégio, cidadania com patriotismo, nacionalismo com fascismo. Machismo com feminismo. Cristianismo, alcoolismo, petismo, corintianismo, bolsonarismo, budismo, palmeirismo, centrismo, direitismo, esquerdismo, astrologismo, ceticismo, fanatismo, ismo ismo ismo… de ismo em ismo , como uma escada com degraus infinitos, a gente vai caindo e batendo a cabeça, a coluna, o ombro , o queixo. De tombo em tombo a gente se machuca e machuca O OUTRO.
E todos os ismos doentes que nossa sociedade ainda comporta. Que eu ainda comporto.
Há duas semanas atrás nós podíamos nos tocar com as mãos. Nós podíamos falar olhando nos olhos sem medo de contrair o que quer que fosse desse OUTRO.
E o que fizemos quando isso ainda nos era possível? O que fiz dos meus braços quando eles ainda podiam abraçar? Quando meu corpo ainda não era arma biológica? Quando eu ainda não era uma ameaça involuntária pra esse OUTRO?
Não quero mais ser espinho.
Sim estou toda contornada nesse momento de uma realidade que me permite não querer ser espinho. Mas me deixem falar em meu nome.
Como uma bílis indigesta presa há muito tempo talvez nos seja dado o tempo de secretar. Secretar o alimento ingerido ao longo de toda a História.
Nos está sendo dado tempo para algo. Pra alguns esse tempo é desespero de não poder pagar o aluguel no próximo mês, pra outros é a condição de abandono total configurada na escassez de alimentos e doações. Pra outros é escassez de visita. De toque. De beijo e abraço. De sorriso e tchau pela janela. Pra outros é respiro e alívio na redução de marcha do cotidiano supersônico que atropela o calendário todo. Pra outros é não precisar de agenda. Pra outros é não ter saneamento básico num momento em que a higiene vai salvar vidas. E por serem tantas as realidades e tantas as diferenças e tantos os ismos, restamos todos à janela remoendo a própria impotência diante da vida do OUTRO.
E o pastor vai distribuir pão. E o professor vai oferecer aula gratuita. E o estádio virando hospital. Os jovens virando entregadores de mercadorias pros mais velhos. E o presidente falando em resfriadinho. E o mundo colapsando por um “resfriadinho”.
(Eu disse que não queria ser espinho. É difícil.)
E eu passando manteiga vegetal num pão sem glúten e toda a assepsia do meu ismo.
Com a despensa abarrotada de arroz enquanto as portas das mercearias se fecham para as pessoas nas ruas. E, no entanto, saber disso não me faz sair de casa.
E o pastor – para cuja qual a religião eu sou toda espinho – distribuindo pães.
E os gatos dormindo como se não houvesse amanhã.
E as crianças nos envolvendo em preocupações outras nos libertando da neurose diária.
E todos os ismos dentro do seu ismo.
Eu não temo meu amor .
Foi-se o tempo em que um vírus seria o maior inimigo.
Se ele é apenas e tão somente o meu trato com o outro que se manifestou e virou forma e cor e , agora, tem vida própria. Se ele é apenas e tão somente o meu espinho personificado e espalhado e potencializado.
Se ele é tão somente eu mesma batendo na parede e voltando.
Se ele é eu-causa eu-consequência.
Se ele é um bumerangue irresponsável que eu trazia nas mãos e não sabia.
Eu trazia nas mãos e não sabia.
E achava que era ismo.
Eu disse que seria irresponsável e literária. E isso me permite reduzir toda a complexidade do nosso sistema em ismos.
Estou cansada – como ser humano – de achar que meu ismo é o certo.
Estou cansada tão cansada,
meu Deus, de ser um espinho militante antes de ser um indivíduo em relação.
Nesse Titanic os botes não são para todos, mas o iceberg talvez seja.
E enquanto cada um se desespera pra se salvar, os músicos tocam como se não houvesse amanhã.
Estou vendo pessoas compartilhando botes. Estou vendo.
Os botes que possuem, cada um à sua maneira, estão sendo postos no mar. E aqueles que temem e fecham a janela e o sorriso, são apenas animais medrosos cujo instinto de sobrevivência ultrapassa o instinto de colaboração.
Cada um é um e oferece o bote que tem.
Meu primo operário não tem bote. Ele é bote.
Estou romantizando pra manter a sanidade.
Estou tentando lavar o mundo com águas frescas.
Estou querendo ter olhos mais amáveis pra depois que tudo isso passar.
E desejo – como ser humano – que nada volte a ser como antes.
Por favor não se sintam agredidos.
Esse texto é uma forma torta de afago.
O afago possível.
(2020)