O raso e a pele do mundo

A sabedoria de saber ser onda, ondinha, marola. O mar é uma das coisas mais profundas que existem. O mar é abismo, existe um universo dentro dele que a gente nem sabe que existe. E se ele tentar jogar a gente lá no fundo pra que a gente perceba do que ele é composto e conheça a alma dele, a gente morre. Então o jeito dele se fazer conhecer, é trazer a gente aqui pro raso, poder tocar o pé, deixar a água bater na canela, na cintura, no ombro, no máximo no pescoço. O que é muito superficial pra alma do mar. Mas assim a gente consegue sorver o que ele é. Se, na ânsia de se fazer conhecer mais profundamente, ele tragar a gente pro fundo dele, a gente se afoga. E não conseguimos nos relacionamos com ele. Então a sabedoria do mar é saber manter as suas relações na superfície e ainda assim manter sua alma e sua profundidade intacta. Com todos os seus seres, com tudo aquilo que o habita. E, ainda assim saber, que ao mesmo tempo, ele pode ter inúmeros quilômetros de profundidade com seres que o habitam lá no fundo, e ao mesmo tempo ele pode ser orla, com seres que habitam sua superfície. E ele é um. Ele não deixa de ser “ele”. Ele dá a cada relação aquilo que lhe cabe. Onda, pra quem é ser de superfície e precisa do oxigênio aqui fora pra sobreviver. Caverna pra quem é ser de profundidade e precisa do escuro dentro dele pra viver. O mar não força quem está na superfície a descer para suas profundezas e não expulsa o que está lá nas suas profundezas para cima. Porque cada ser vive num tipo de nível  e isso não tem qualidade de valor . Isso é da qualidade da experiência que cada ser escolher viver ao assumir um corpo. A natureza de cada ser. Então não tem porque ser maremoto pra quem precisa só da marola. Essa marola já dá a dimensão de uma profundidade relacional suficiente com a alma do mar. Eu sinto isso aqui no raso. Ele está se comunicando comigo de uma forma inexplicável. Eu tento traduzir em palavras e fracasso porque a palavra é a superfície da experiência humana.

Foi isso que aprendi com o mar:

Dar o chão que cada relação precisa. Não importa se acima ou abaixo. Mas a forma como cada pessoa pode te sorver. Não é você quem escolhe, é a pessoa quem entende o quão profundo ela pode ir em você.

 É também sobre não afogar o outro dentro de mim. Sobre ser mar. Quando estou aqui eu sou mar. Eu sou esse poder. Eu sou essa onda, essa marola, esse sal, essa profundidade. Não levar ninguém para minhas profundezas a ponto de afogá-lo em mim. Não atropelar ninguém com as minhas ondas, não salgar ninguém para além do necessário. Poder ser kilométrica, horizontal, profunda, vertical. E, acima de tudo, não obrigar ninguém a percorrer meus quilômetros nem pra baixo, nem para os lados, nem para cima. Poder estar no centro, poder ser todo mundo que pisa em mim, poder me relacionar a partir dos pés. Poder ser chão pra quem é planta de pé. Poder ser firme para sustentar os pés e os passos das pessoas. Ser passivo pra receber o que colocam dentro dele, mas não o suficiente a ponto de precisar devolver o que colocam dentro dele. Vir aos poucos, vir espumando, vir e voltar. Estar embaixo do céu, e aceitar estar embaixo. Estar embaixo do Sol, e aceitar estar embaixo. Estar embaixo da lua e aceitar estar embaixo. Mas aceitar que reflete também. Que reflete céu, que reflete sol, que reflete lua, que reflete estrela. E que “baixo” e “cima” quando você olha o sistema solar não existe, porque o planeta é redondo e tem muitos planetas, asteróides e estrelas abaixo de nós, e acima e aos lados. A galáxia se movimenta, o sistema solar todo se movimenta. As pessoas se seguem. Eu sigo as pessoas. Tem as placas de “perigo” também. Cuidado ao entrar dentro de uma pessoa. Toda pessoa é um mar. Toda pessoa é um mar. TODA MEMÓRIA É MAR.

E nós, aqui no raso, somos a pele do mundo.

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