Como um retrovisor pode fazer diferença em nossa vida. Para sempre. Naquela segunda-feira choveu muito e meu pai decidiu me levar na escola de carro. Viemos calados. Eu era de poucas palavras. Sempre fui. Não sabia encurtar espaço entre eu e qualquer outro. Tanto que eu não tinha amigos. Não sabia fazê-los, não sabia como começar uma conversa, como adentrar um recinto, como inaugurar qualquer mísero começo de relação. Então eu desenvolvi uma técnica pra ninguém perceber isso. No recreio, pra que meus colegas não percebessem que eu passava o recreio sozinha, eu brincava de esconde-esconde. Sozinha mesmo. Eu fingia que procurava, fingia que me escondia, batia cara. Assim todos pensariam que eu estava rodeada de pessoas escondidas jogando comigo. Quando ele parou o carro pra eu descer, eu fui me despedir e, por algum motivo que desconheço, olhei ele pelo retrovisor e tive vontade de dizer que o amava. Mas não disse. Escondi a palavra no retrovisor, dei um beijo entalado em sua bochecha e desci do carro. – ‘tchau pai!’.
Escondida atrás da lixeira da quadra, eu assistia às pessoas me assistindo brincar. Eu me divertia e sorria por dentro como quem acreditasse na imagem que passava. ‘Verônica 1,2,3 pega!’. Eu fingia que ouvia alguém gritar e saía correndo pra salvar o mundo. Não consegui salvar aquela segunda-feira. 1,2,3,4,5, eu contava com a cara na parede e pensava que um terço do recreio já tinha passado e eu tinha que atuar mais 2/3. Era bom fingir que o mundo estava à minha volta, mas escondido. Assim eu tinha a todos. Saí da escola no fim da tarde e acho que peguei um ônibus. Dois terços do recreio já tinham passado. ‘Marcos 1,2,3 pego! Pedro, não vale lá na capela! Virginia eu to vendo você!’. O bom de fingir é que você cria um mundo pro outro acreditar, mas quem acaba acreditando de verdade é você. Meu pai tinha um disco de efeitos sonoros que tinha som de vidro quebrando. Toda vez que recebíamos visitas em casa, meu pai colocava o disco na vitrola, a gente se escondia na cozinha e fingíamos que estávamos brigando. Para constranger as visitas. Brincadeira besta – depois elas deviam pensar. Eu não. Cheia de orgulho eu contava: uma vez meu pai cortou o cabelo da minha amiga. Mas foi sem querer. Ele pegou a tesoura e passou perto do cabelo dela fingindo que ia cortar. E ela ria. Rindo ela se mexeu e o cabelo entrou na tesoura. Ela chorou. Ele ficou vermelho feito um pimentão. Não foi ele, eu penso, o cabelo se cortou sozinho. Estou chegando em casa, cansada da escola, mas antes passo na farmácia pra comprar um remédio para o tratamento da pele do meu rosto. Tenho algumas espinhas. Fim do recreio. 1,2,3 Verônica salva o mundo. Volto pra sala e todos me olham mas não vêem os que estavam comigo. ‘Estão bebendo água’- eu respondo – ‘dei uma canseira neles’. E pisco por dentro como que se conta um segredo. Entro na sala. Meus amigos do esconde- esconde não. São da outra série. Eles não vão entrar nunca na sala e eu nunca precisarei apresentar eles aos meus colegas. Uma vez eu estava fritando alguma coisa no fogão. Era mais uma festa em casa. Meu pai engraçadinho se escondeu atrás da porta e jogou uma barata de plástico pra me assustar. A barata caiu na panela e fritou. Fiquei brava. Ele, vermelho mais uma vez.
O remédio do meu rosto chama clindacne e custa 40 reais, mas estou sem dinheiro. Ainda bem que em farmácia de bairro se pode fazer conta. Deixo marcado. Estou na sala de aula agora e todos os meus amigos continuam escondidos no recreio. Até amanhã. Espero que não chova como no filme que gravei com meu pai. Ele queria filmar um terremoto. Fez todo o roteiro e dirigiu a nossa atuação. No filme, ele entra em casa melancólico, depois de um dia de trabalho e, ao som de Richard Clayderman, ele pede pra eu tirar o foco dele e, aos poucos, focar o céu. Era pra subentender que uma tempestade estava por vir. Mas o céu não colaborou. Estava azul, feito meu pai. Depois eu tinha que cair pela casa como quem é pega de surpresa pelo terremoto e ele ia tremendo a câmera pra deixar a cena mais real. Foi incrível. Tão incrível quanto chegar em casa depois do mercado e me deparar com a casa revirada, os móveis caídos e ele estatelado no chão, morto de assalto. Eu olhava dois segundos essa situação e, antes de eu me desesperar, ela abria os olhos e caía na risada. Porque ele gostava de brincar de morrer.
Estou chegando em casa com o remédio na mão. Entro e aviso meu pai que marquei na farmácia. Ele fica nervoso. Mais uma conta, pensa. E eu entendo esse sinal: ele está nervoso um pouco a mais do que o normal.
Subo pro quarto. Acho que troco de roupa. Meus amigos continuam escondidos no recreio de amanhã. Desço as escadas. Meu pai grava um filme onde ele é um marionete que dubla uma música francesa. Desço as escadas. Passo um café pra gente. Chego na sala. Não lembro muito. Ele está deitado no sofá e começa a falar algo pra mim. Não consigo mais ver o que acontece. Ele começa a brincar de novo de morrer. Só que desta vez ele se superou. Conseguiu mudar a cor de sua face. Tudo muito rápido. É brincadeira, eu penso. Ele fica amarelo, depois vermelho como quando a barata fritou na panela, depois roxo e, por último, azul como o céu do filme do terremoto. Brincadeira besta, penso. Espero ele abrir os olhos e cair na risada. Isso não acontece. Pego o telefone e tento discar algo, mas não sei pra onde ligar. Sai um líquido de sua boca. Eu saio correndo e pulo a Muralha da China. Peço pra tia Sumiê discar pra algum lugar de socorro. Não consigo pensar. Não entro mais em casa. Fico na rua esperando o resgate e tampando os ouvidos. 1,2,3,4,5,6 começo a contar. Não vale guardar caixão. Quatorze anos depois chega o resgate. Lembro de sua pouca velocidade. Dentro do resgate olho pra ele na maca e fico tampando os ouvidos de alguma notícia que não quero receber. Fico rezando e na oração digo a Deus que serei mais calma, mais filha, que não marco mais remédio na farmácia, que não vou discutir por bobeira, que não vou mais esconder palavras no retrovisor. Agradeço a chance de poder ter um presta atenção deste porte para poder mudar a minha relação de filha com ele. Rezo e sei que ele vai voltar bem porque é a única alternativa possível. É a pista que a vida dá para nos atentarmos mais às relações. Eu já entendi, Vida. Agradeço desde já e já mudei. Agora traz meu pai. Saímos do resgate. Sala de hospital. Espera. Cara do médico vindo em minha direção. Antes que ele chegue até mim entendo prontamente o que aconteceu e sou tomada pelo dever de ser útil. Vou ao seu encontro e digo que ele está melhor que nós. Foi a primeira frase que pronunciei quando entendi a brincadeira.
Ele morreu que nem ele brincava.
Depois disso não lembro de dor. Lembro da burocracia. Liguei pro primo dele e disse: ‘Oi Edson, tudo bem? Aqui é a Verônica, filha do Jair. To ligando porque meu pai morreu. Precisamos enterrar ele em Cravinhos’. Nesta hora alguém tira o telefone da minha mão e toma a frente de maneira mais sutil. Meus vizinhos chineses, que a essa altura voltam a ser japoneses, vem dar apoio. A tia Sumiê escolheu a última roupa do meu pai. Não consegui chorar. Acho que não deu tempo. Eu precisava ser útil. Não tem mais recreio. Todos estão escondidos. Eu disse que não valia guardar caixão.Tanto não valia que não guardei. Não vi seu enterro, aguardei do lado de fora. Coisa besta essa de abrir um buraco na terra, colocar a pessoa que você mais ama dentro, e cobrir. E você tem que assistir a isso como se fosse a coisa mais normal do mundo. Esvaziei, no trajeto até Cravinhos, um vidro de floral. Estranho seguir um carro da funerária pelo trajeto que se fez a vida inteira a passeio com a pessoa que está, agora, neste carro da frente. Só e escura num porta malas. E eu seguindo atrás. Velório é gozado. As pessoas começam a falar do meu pai com o tempo no passado: ele era assim, ele era assado. Isso me irrita. Porque hoje até às 8 da noite ele estava lá, sendo. Como pode não ser mais? Me sinto ofendida. Ele continua sendo. Não sabemos onde. Mas ele é. Essa é a coisa que mais me incomoda nos velórios. Essa aceitação e transposição estúpida de um “é” pra um “era”.Como se eu olhasse o gelo e dissesse: a água “era”. A água está escondida agora no gelo. O gelo é água disfarçada.
Meu pai apenas se esconde. Por pouco tempo. Pois agora sem corpo todo encontro é possível. É como o brincar de esconde esconde na iminência de sempre encontrar.
Um, dois, três: Jair pego.
Ninguém sabe. Mas no final eu apareço e salvo o mundo. Aí todos os colegas invisíveis saem de seus esconderijos e vêm até mim. O Alf também estava escondido. Tia Sumiê trás um prato de gohan e um par de hashi de plástico. A Su, o Binho, o Rei, a minha vó, todos comem arroz japonês e pintam a cara de branco pra dançar. Chovem baratas de plástico. Minha amiga Melissa nunca mais cortou os cabelos. Hoje ela é a Rapunzel. Eu olho pro céu: finalmente consegui o tom ideal para a tempestade. A quadra treme, todas essas pessoas caem no chão. Eu estou longe e vejo que não salvei o mundo. É agora que ele começa, no seu tempo e a seu modo, a ruir. E com o mundo ruindo em tremores e arroz e baratas, eu consigo o meu melhor filme.
O único.
(2014)