Vênus e as mangas

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Aprendi a me maquiar depois dos 40 anos. Durante a primeira metade da minha vida eu ignorava que tinha corpo. Não que eu não gostasse dele, apenas não me lembrava dele. Não tinha tempo nem foco pra ele. Não usava maquiagem, roía unhas e gostava do cabelo preso ao acaso.

Esquecia que tinha pés – vivia perdendo os sapatos.

Pois uma pessoa sem pés, é um furacão de ideias, pensamentos e gritos.

E uma pessoa furacão só com cabeça, aura e voz cria muito mas não se apresenta: nem ao mundo e nem a si mesma. O corpo, o rosto e as escolhas que fazemos na forma como nos mostramos, é por onde as pessoas nos vêem pela primeira vez. E eu achava que as pessoas tinham a obrigação de olhar pra mim e ver dentro. Porque era assim que eu via as pessoas. Se eu não tinha corpo, também não via o delas. E eu sempre tive dificuldade com a tal da Vênus. Vênus, dentre muitas outras coisas, nos lembra do prazer de se estar num corpo. Prazer, para mim, era estar sempre com o espírito raspando na realidade. Prazer era ver a realidade meio enevoada, como se o mundo fosse todo dia o pôr do sol batendo nos olhos. Até que vim morar no meio do mato. E a terra te coloca em contato com o corpo: o seu e o das coisas todas. E chega um dia (é ridículo eu sei, mas sempre chega um dia na vida em que viveremos na pele todos os clichês e eles farão o maior sentido), chega um dia que você acompanha mesmo o crescimento de uma semente. Acompanha a larva comendo a folha e fazendo seu casulo. Vê que a mangueira dá mais mangas do que você ou sua vizinhança toda consegue comer. E vê que ao seu lado tudo abunda enquanto a maior parte do mundo experimenta miséria. E as mangas apodrecem no seu quintal. E faz suco, faz geléia, doa, e elas continuam caindo e apodrecendo. E o mundo colapsando do lado de fora.

Esse texto é tão apartado da realidade quanto eu era antes de ter corpo então me permitam falar das mangas.

As mangas me devolvem a dimensão do meu tamanho.

Antes eu era infinita e cabia em tudo.

Hoje sou do meu tamanho e caibo apenas onde cabe meu corpo.

 

E caber em algo, liberta.

 

(2020)

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